segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Produtos midiáticos e suas representações sociais

Podemos dizer que a mídia é a principal janela interpretativa da vida contemporânea. Por ela conhecemos o mundo através dos desenhos, filmes, seriados, jornalismo, talk shows, entre outros produtos produzidos para atrair o maior número de pessoas (consumidores) possível e gerar lucros. É por ela que construímos uma idéia de como são os povos do outro lado do mundo, de como se comportam cidadãos de diversas culturas, classes e etnias. Dessa forma, podemos também absorver seus valores, sua forma de ver o mundo, seu ethos liberalista ou conservador. Ou seja, tomar a interpretação da mídia como verdade e, assim, construir a nossa visão política.
Antes de continuar, faço uma ressalva. Este texto não trata de uma maneira de mostrar que existe uma manipulação poderosa e irresistível por trás das grandes produções midiáticas de tal forma que a elite – com total domínio dos meios – controle o pensamento das massas de forma irrepreensível. Não, como se sabe, a teoria da manipulação pura e simples é uma argumentação ultrapassada.
Trata-se, portanto, de fazer uma leitura crítica e mostrar que todos os produtos da mídia carregam pontos de vista culturais e sociais específicos que nos ajudam na construção do entendimento da realidade. Ou seja, é através da difusão das "representações sociais e culturais" veiculadas na mídia, que certos valores são perpetuados, rejeitados ou transformados.
Para entender melhor o que são essas representações, apresento uma pequena análise de três produtos midiáticos atuais: o programa CQC (transmitido pela Band), a novela Caminho das Índias (Rede Globo) e o jornalismo da Folha de S.Paulo.
Custe o Que Custar
Em menos de um ano, o CQC (Custe o que Custar) ganhou notoriedade e forte audiência no país. As representações contidas no produto são variadas. Há representações ideológicas positivas e outras negativas. No lado positivo, pode-se argumentar que o programa apresenta jovens honestos, extremamente insatisfeitos com a corrupção na política e na sociedade, chegando a sofrer ameaças de censura. Assim, pode-se dizer que sua representação serve como uma espécie de "incentivo" aos jovens para tomar consciência política cidadã; exigir conduta ética de seus representantes e combater a corrupção.
Já do lado negativo, pode-se dizer que o programa possui o seguinte "eu ideológico": é totalmente formado por homens, brancos e representantes da classe média e alta paulista. Diversas piadas machistas são feitas durante o programa e, não raro, sexistas, colocando a mulher como simples objeto sexual. Não é à toa que o programa já foi processado diversas vezes. Um exemplo que ficou notório foi o caso das integrantes do grupo musical Sexy Dolls, que foram chamadas de prostitutas pelo apresentador Marcelo Tas. O lado machista do programa também é reforçado pelas piadas e brincadeiras satirizando os homossexuais, com ironias sobre comportamentos que seriam "típicos" de um gay, entre os próprios integrantes, às vezes, como se fossem vergonhosos. Assim, sua representação ideológica aponta para o homem branco heterossexual, honesto, machista, sem espaço claro para outras etnias.
Caminho das Índias
Produto cultural bem mais complexo, a novela envolve várias representações sociais e culturais bem mais diversas. Na verdade, seria necessário um livro para analisá-la corretamente à luz dos estudos culturais. Pode-se argumentar que o programa mostra como é errado e ignorante qualquer tipo de preconceito, assim como a exclusão social ao dramatizar a vida dos integrantes da casta indiana Dalits, considerados pó, e não filhos do deus supremo. Ao mesmo tempo, pode-se dizer que a dramatização das castas indianas aponta, de maneira velada, contra o radicalismo religioso de alguns segmentos no Brasil, como no caso dos neopentecostais e até mesmo da Igreja Católica – contrária ao uso de métodos anticoncepcionais.
Ao mesmo tempo, é possível notar alguns traços conservadores. A novela reforça os laços familiares, principalmente quando compara os valores das famílias brasileiras com as da Índia. O que leva a uma reflexão da importância do respeito aos pais, à esposa e aos filhos. Assim, de maneira sutil, acaba fazendo uma crítica aos valores liberalistas culturais, ao mostrar que as conservadoras famílias indianas estariam sendo desmembradas justamente por uma onda liberal ocidental, tornando-as infelizes.
Essa visão, no geral, acaba retomando a posição conservadora patriarcal da família, onde o homem deve ser peça fundamental para guiá-la, no intuito de torná-la bem sucedida. Caso contrário, poderá ser um desastre. Fato reforçado pela imagem da família do personagem Zeca, onde o pai, Sérgio, não "controla" os momentos impulsivos da esposa, nem coloca limites nos filhos. A falta de atitude paterna faz com que Zeca seja rebelde e arruaceiro.
A posição conservadora também é vista no personagem Raul (na ocasião, marido da Sílvia), que acabou pagando um alto preço por causa de seu adultério com a vilã Ivone. O que mostrou que pode ser extremamente arriscado e doloroso ao homem cometer adultério – não vale a pena. Já a vilã Ivone, uma das poucas mulheres independentes da trama, é mostrada como ambiciosa, criminosa, cínica e totalmente desprovida de moralidade, associando as mulheres solteiras e independentes a uma imagem misteriosa e pouco confiável.
Folha de S.Paulo
O jornalismo atual possui diversas teorias bem articuladas. Elas possibilitam análises esclarecedoras sobre o processo de produção de notícias. Uma delas, inserida no grupo que compõem as teorias construcionistas do jornalismo (newsmaking), é a Teoria Interacionista ou Teoria dos Definidores Primários. Tendo essa perspectiva em mente, vamos à pequena análise.
Todos sabemos que o jornal Folha de S.Paulo é voltado para os valores liberalistas. Portanto, sua representação social contribui para a construção de uma realidade que acredita na intervenção mínima do Estado na economia, na privatização, no liberalismo econômico e cultural. É extremamente cosmopolita e, historicamente, simpatizante dos partidos de direita.
As vozes sociais ouvidas na grande maioria das reportagens partem da subordinação às opiniões das fontes que têm posições institucionalizadas, também chamadas de definidores primários. Essas fontes definem o rumo de qualquer notícia. Como diz Nelson Traquina no livro Teorias do Jornalismo, "essa interpretação comanda a ação em todo o tratamento subseqüente e impõe os termos de referência que nortearão todas as futuras coberturas".
Assim, quando a Folha de S.Paulo ouve algum "mega economista" dizendo que o governo deve enxugar sua folha de pagamento, se posicionando contrariamente à grande criação de concursos públicos, parte de uma visão que defende os interesses da classe de empresarial hegemônica. Ela gera uma série de outras reportagens que partem da primeira visão liberalista. A representação interpretativa inicial, portanto, acaba saindo como uma verdade norteadora das reportagens seguintes, inclusive quando se ouve opiniões contrárias.
Prevalece sobressalente, portanto, a crença num mundo liberalista econômico e contrário ao crescimento do Estado. Recentemente, por exemplo, a Folha de S.Paulo defendeu, em editorial, o fechamento da TV Brasil, afirmando que a mesma é um claro sinal de desperdício do dinheiro público. De maneira bem clara, quis afirmar que a melhor saída será sempre a iniciativa privada.


JN
Falar de telejornalismo no Brasil é falar do Jornal Nacional. O programa dita normas, formatos e conceitos sobre o fazer jornalístico no horário nobre. Há mais de 40 anos o programa se mantém, na maioria das vezes, em primeiro lugar de audiência, o que causa na concorrência uma busca incessante pela superação do JN. No entanto, há exceções. O Furo MTV busca referências no JN, não para competir em termos de audiência, mas para construir seus discursos pautados por uma outra lógica, a sátira.
O primeiro paralelo que podemos traçar do JN com o Furo MTV passa pela composição dos apresentadores. Nos dois programas é um casal que apresenta. É importante destacar que no JN o Willian Bonner e a Fátima Bernardes são casados, o que consolida, de alguma forma, ainda mais essa idéia de “casal”. Roger Silverstone, em seu texto, Por que estudar a mídia?, faz alguns apontamentos que considero importante destacá-los. Em um deles, que trata sobre o nosso tempo, ele diz: Nossa mídia existe no tempo… ele [o tempo] é como elas [as mídias] nos contam, não apenas nas fantasias subjuntivas de “como se”, mas por nossa capacidade de nos reconhecer, em alguma parte, durante algum tempo, dentro delas. Analisando sob esta perspectiva e considerando que vivemos uma época de efervescência sexual, onde quase tudo suscita o ideal de corpo perfeito, podemos entender melhor porque Willian e Fátima, que são jovens e bonitos, substituíram Cid Moreira e Sergio Chapelin. No Furo MTV, telejornal da emissora da Abril, Bento Mineiro, que as vezes é chamado de “galã da Favorita”, telenovela global que atuou anteriormente, e Dani Calabresa são os apresentadores, numa clara alusão ao JN.
Seguindo o mesmo raciocínio podemos dizer que o JN dá uma aula de pornografia, lição que é captada pelo Furo MTV, mas em um tom de sátira. Antes de continuar, faz-se extremamente importante desconstruir o conceito de senso comum que temos sobre pornografia. É preciso antes de dar prosseguimento, explicar o que é, para esta análise, erotismo e como ele se configura: O lugar mais erótico de um corpo não é onde o vestuário se entreabre? Na perversão (que é o domínio do prazer textual) não há “zonas erógenas”… é a intermitência, como disse muito bem a psicanálise, que é erótica; a intermitência da pele que cintila entre duas peças (as calças e o suéter), entre duas bordas (a camisa entreaberta, a luva e manga); é essa cintilação que seduz, ou ainda: encenação de um aparecimento-como-desaparecimento. (Barthes, 1976, p. 9 -10). Para Silverstone, o pornográfico é o canto rasgado da vida erótica da mídia e de nossa vida erótica.
O mais interessante nesse processo é perceber características do JN fora do JN. Quando outras emissoras se apropriam de táticas globais e, sobretudo do JN, para construírem seus discursos é que percebemos como sua matriz é constituída. Somente quando vemos os apresentadores do Furo MTV, Bento Mineiro, um pseudo-galã, e Dani Calabresa, uma loira com sotaque interiorano, é que conseguimos pensar naquilo que tem de pornográfico no JN, ou seja, Willian Bonner e Fátima Bernardes. Por fim gostaria de acrescentar: alguém arriscaria dizer que o JN é mais “jornalístico” que o Furo MTV ? Penso que maioria das pessoas diriam que sim, mas aviso, o Furo MTV é mais severo em seu noticiário político que a própria Globo, que nunca teve muito interesse em bater nos medalhões da política brasileira.

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